A
minha carreira de Promotor de Justiça foi pautada sempre pelo princípio
da importância (inventei agora esse princípio), isto é, priorizava
aquilo que realmente era significante diante da quantidade de fatos
graves que ocorriam na Comarca em que trabalhava. Até porque eu era o
único promotor da cidade e só havia um único juiz. Se nós fôssemos nos
preocupar com furto de galinha do vizinho; briga no botequim de bêbado
sem lesão grave e noivo que largou a noiva na porta da igreja nós não
iríamos dar conta de tudo de mais importante que havia para fazer e como
havia (crimes violentos, graves, como estupros, homicídios, roubos,
etc).
Era
simples. Não há outro meio de você conseguir fazer justiça se você não
priorizar aquilo que, efetivamente, interessa à sociedade. Talvez esteja
aí um dos males do Judiciário quando se trata de “emperramento da
máquina judiciária”. Pois bem. O Procurador Geral de Justiça (Chefe do
Ministério Público) da época me ligou e pediu para eu colaborar com uma
colega da comarca vizinha que estava enrolada com os processos e
audiências dela. Lá fui eu prestar solidariedade à colega. Cheguei, me
identifiquei a ela (não a conhecia) e combinamos que eu ficaria com os
processos criminais e ela faria as audiências e os processos cíveis. Foi
quando ela pediu para, naquele dia, eu fazer as audiências,
aproveitando que já estava ali. Tudo bem. Fui à sala de audiências e me
sentei no lugar reservado aos membros do Ministério Público: ao lado
direito do juiz.
E eis que veio a primeira audiência do dia: um crime de ato obsceno cuja lei diz:
Ato obsceno
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O
detalhe era: qual foi o ato obsceno que o cidadão praticou para estar
ali, sentado no banco dos réus? Para que o Estado movimentasse toda a
sua estrutura burocrática para fazer valer a lei? Para que todo aquele
dinheiro gasto com ar condicionado, luz, papel, salário do juiz, do
promotor, do defensor, dos policiais que estão de plantão, dos oficiais
de justiça e demais funcionários justificasse aquela audiência? Ele,
literalmente, cometeu uma ventosidade intestinal em local público, ou em
palavras mais populares, soltou um pum, dentro de uma agência bancária e
o guarda de segurança que estava lá para tomar conta do patrimônio da
empresa, incomodado, deu voz de prisão em flagrante ao cliente peidão
porque entendeu que ele fez aquilo como forma de deboche da figura do
segurança, de sua autoridade, ou seja, lá estava eu, assoberbado de
trabalho na minha comarca, trabalhando com o princípio inventado agora
da importância, tendo que fazer audiência por causa de um peidão e de um
guarda que não tinha o que fazer. E mais grave ainda: de uma promotora e
um juiz que acharam que isso fosse algo relevante que pudesse autorizar
o Poder Judiciário a gastar rios de dinheiro com um processo para que
aquele peidão, quando muito mal educado, pudesse ser punido nas “penas
da lei”.
Ponderei
com o juiz que aquilo não seria um problema do Direito Penal, mas sim,
quando muito, de saúde, de educação, de urbanidade, enfim… Ponderei,
ponderei, mas bom senso não se compra na esquina, nem na padaria, não é
mesmo? Não se aprende na faculdade. Ou você tem, ou não tem. E nem o
juiz, nem a promotora tinham ao permitir que um pum se transformasse num
litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.
O
problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali ouvindo
tudo aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já que ali estava, eu
iria me divertir. Aprendi a me divertir com as coisas que não tem mais
jeito. Aquela era uma delas. Afinal o que não tem remédio, remediado
está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do campo, mas com idade avançada, aproximadamente, uns 70 anos.
Eis a audiência:
Juiz
– Consta aqui da denúncia oferecida pelo Ministério Público que o
senhor no dia x, do mês e ano tal, a tantas horas, no bairro h, dentro
da agência bancária Y, o senhor, com vontade livre e consciente de
ultrajar o pudor público, praticou ventosidade intestinal, depois de
olhar para o guarda de forma debochada, causando odor insuportável a
todas as pessoas daquela agência bancária, fato, que, por si só, impediu
que pessoas pudessem ficar na fila, passando o senhor a ser o primeiro
da fila.
Esses fatos são verdadeiros?
Réu – Não entendi essa parte da ventosidade…. o que mesmo?
Juiz – Ventosidade intestinal.
Réu – Ah sim, ventosidade intestinal. Então, essa parte é que eu queria que o senhor me explicasse direitinho.
Juiz
– Quem tem que me explicar aqui é o senhor que é réu. Não eu. Eu cobro
explicações. E então.. São verdadeiros ou não os fatos?
O
juiz se sentiu ameaçado em sua autoridade. Como se o réu estivesse
desafiando o juiz e mandando ele se explicar. Não percebeu que, em
verdade, o réu não estava entendendo nada do que ele estava dizendo.
Réu
– O guarda estava lá, eu estava na agência, me lembro que ninguém mais
ficou na fila, mas eu não roubei ventosidade de ninguém não senhor. Eu
sou um homem honesto e trabalhador, doutor juiz “meretrício”.
Na
altura da audiência eu já estava rindo por dentro porque era claro e
óbvio que o homem por ser um homem simples ele não sabia o que era
ventosidade intestinal e o juiz por pertencer a outra camada da
sociedade não entendia algo óbvio: para o povo o que ele chamava de
ventosidade intestinal aquele homem simples do povo chama de PEIDO. E
mais: o juiz se ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a
audiência.
Juiz
– Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim meritíssimo. Em
segundo, ninguém está dizendo que o senhor roubou no banco, mas que
soltou uma ventosidade intestinal. O senhor está me entendendo?
Réu
¬– Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor estivesse me
chamando de ladrão. Nunca roubei nada de ninguém. Sou trabalhador.
E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada para fazer prova de trabalho.
Juiz – E então, são verdadeiros ou não esses fatos.
Réu – Quais fatos?
O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a voz repetiu.
Juiz – Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor não está me ouvindo?
Réu – To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor. Eu não prestei bem atenção.
O
juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia e insistiu
na tal da ventosidade intestinal, mas o réu não alcançava o que ele
queria dizer. Resolvi ajudar, embora não devesse, pois não fui eu quem
ofereci aquela denúncia estapafúrdia e descabida. Típica de quem não
tinha o que fazer.
EU – Excelência, pela ordem. Permite uma observação?
O
juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de casa e jogou
bola de gude no tapete persa do seu apartamento, permitiu, prontamente,
minha manifestação.
Juiz – Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.
Eu
– É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é um peido. Ele
não esta entendendo o significado da palavra técnica daquilo que todos
nós fazemos: soltar um pum. É disso que a promotora que fez essa
denúncia está acusando o senhor.
O
juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e objetivas, mas
deu aquele riso de canto de boca e reiterou o que eu disse e perguntou,
de novo, ao réu se tudo aquilo era verdade e eis que veio a confissão.
Réu – Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor “meretrício” quer dizer.
O juiz o interrompeu e corrigiu na hora.
Juiz – Meretrício não, meritíssimo.
Pensei
comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber o que é um adjetivo
(meritíssimo)? Não dá. É muita falta de sensibilidade, mas vamos fazer a
audiência. Vamos ver onde isso vai parar. E continuou o juiz.
Juiz
– Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou para o senhor de
que o senhor é acusado o que o senhor tem para me dizer sobre esses
fatos? São verdadeiros ou não?
Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque quer saber da verdade, sei lá do que.
Réu
– Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me condenar? Vai dizer
que o meretrício nunca peidou? Que o Promotor nunca soltou um pum? Que a
dona moça aí do seu lado nunca peidou? (ele se referia a secretária do
juiz que naquela altura já estava peidando de tanto rir como todos os
presentes à audiência).
O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as pessoas que ali estavam, mas ele insistiu em confessar seu crime.
Réu
– Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu para eu abrir
minha bolsa quando a porta giratória travou, eu abri. A porta continuou
travada e ele pediu para eu levantar a minha blusa, eu levantei. A porta
continuou travada. Ele pediu para eu tirar os sapatos eu tirei, mas a
porta continuou travada. Aí ele pediu para eu tirar o cinto da calça, eu
tirei, mas a porta não abriu. Por último, ele pediu para eu tirar todos
os metais que tinha no bolso e a porta continuou não abrindo. O gerente
veio e disse que ele podia abrir a porta, mas que ele me revistasse. Eu
não sou bandido. Protestei e eles disseram que eu só entraria na
agência se fosse revistado e aí eu fingi que deixaria só para poder
entrar. Quando ele veio botar a mão em cima de mim me revistando,
passando a mão pelo meu corpo, eu fiquei nervoso e, sem querer, soltei
um pum na cara dele e ele ficou possesso de raiva e me prendeu. Por isso
que estou aqui, mas não fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal
com todo aquele constrangimento das pessoas ficarem me olhando como seu
eu fosse um bandido e eu não sou. Sou um trabalhador. Peidão sim, mas
trabalhador e honesto.
O
réu prestou o depoimento constrangido e emocionado e o juiz encerrou o
interrogatório. Olhei para o defensor público e percebi que o réu foi
muito bem orientado. Tipo: “assume o que fez e joga o peido no
ventilador. Conta toda a verdade”. O juiz quis passar a oitiva das
testemunhas de acusação e eu alertei que estava satisfeito com a prova
produzida até então. Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado
ouvindo testemunhas falando sobre um cara peidão e um segurança maluco
que não tinha o que fazer junto com um gerente despreparado que gosta de
constranger os clientes e um juiz que gosta de ouvir sobre o peido
alheio. Eu tinha mais o que fazer. Aliás, eu estava até com vontade de
soltar um pum, mas precisava ir ao banheiro porque meu pum as vezes pesa
e aí já viu, né?
No
fundo eu já estava me solidarizando com o pum do réu, tamanho foi o
abuso do segurança e do gerente e pior: por colocarem no banco dos réus
um homem simples porque praticou uma ventosidade intestinal.
É
o cúmulo da falta do que fazer e da burocracia forense, além da
distorção do Direito Penal sendo usado como instrumento de coação moral.
Nunca imaginei fazer uma audiência por causa de uma, como disse a
denúncia, ventosidade intestinal. Até pum neste País está sendo tratado
como crime com tanto bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas o
judiciário parou para julgar um pum.
Resultado:
pedi a absolvição do réu alegando que o fato não era crime, sob pena de
termos que ser todos, processados, criminalmente, neste País,
inclusive, o juiz que recebeu a denúncia e a promotora que a fez. O
juiz, constrangido, absolveu o réu, mas ainda quis fazer discurso
chamando a atenção dele, dizendo que não fazia aquilo em público, ou
seja, ele é o único ser humano que está nas ruas e quando quer peidar
vai em casa rápido, peida e volta para audiência, por exemplo.
É
um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou seja, o
que tem medo de peidar. Só peida no banheiro e se não tem banheiro ele
se contorce, engole o peido, cruza as perninhas e continua a fazer o que
estava fazendo como se nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.
Moral
da história: perdemos 3 horas do dia com um processo por causa de um
peido. Se contar isso na Inglaterra, com certeza, a Rainha jamais irá
acreditar porque ela também, mesmo sendo Rainha… Você sabe.
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário